sexta-feira, 21 de março de 2008

Segredos

Ela abriu os olhos. O silêncio estava por toda parte. Apenas um pequeno relance de luz matinal insistia em querer transbordar para além da janela cortinada. Mais um dia, pensou. Seus olhos percorreram seu redor sem que o corpo os acompanhasse. Até que encontraram um homem que dormia pacificamente ao seu lado. Quantos dias, pensou. Um homem com quem dividira tantas luas e tantos sóis. Poderia dizer que o conhecia minuciosamente e, no entanto, sabia que seria capaz de se perder num labirinto infinito de possibilidades que habitavam aquele ser finito. Possibilidades essas que nunca chegariam à superfície, permaneceriam recônditas numa imensa escuridão. Preparou-se para levantar, mas o peso de toda uma vida não o permitiu. De repente uma lembrança perdida na infância veio à tona e de tão nítida a fez crer em viagens no tempo. Lembrou-se de quando, subindo numa árvore, no sítio de seus avós, apanhava jaboticaba. Como tudo àquela época era simples, lembrou. E naquele quarto agora estava. Sentia-se esposa, sentia-se mãe, sentia-se avó e tudo isso o era. E talvez quisesse que não fosse nada disso. Casou-se ainda menina, sem muita escolha, sem muito amor. Porque no tempo de sua juventude se casava. Era o costume. É para sua segurança, dizia sua mãe. E assim se uniu a um homem do qual pouco conhecia. Sabia apenas que trabalhava com números e nutria um sentimento especial por gravatas. Presa à sua rotina, por vezes tentava imaginar como estaria vivendo seu eu que tomou um outro caminho. Quais seriam seus sonhos, seus anseios, suas desilusões. Seria feliz? Meus filhos são saudáveis, agradeceu, e voltou a coser os shorts de brincar das crianças. Os anos passaram num ritmo lento e ali agora estava, deitada na cama. Conseguiu se levantar e já no banheiro, diante do espelho, viu alguém que não reconhecia. De repente sentiu doer uma dor intensa e singelas lágrimas irromperam sem pedir licença. Saudade do que poderia ter sido e não foi, e ainda assim talvez não quisesse que o fosse. Simplesmente uma curiosidade de querer saber como tudo poderia ter sido diferente. Teria sido feliz? Mas não seria felicidade ter filhos e netos saudáveis, questionou a si mesma. Recompôs-se. Este será mais um dia. Um pouco além de um dia apenas. Completa bodas. Será parabenizada, ganhará presentes, abraços e beijos. No final do dia continuarão desconhecendo seus segredos.

Um comentário:

Grazi disse...

Você já estreou o novo blog e de forma espetacular! Nunca vi você escrevendo assim! Adorei! Por que não me avisou que já estava por aqui? Depois vou ler tudinho! Beijos.